As fontes renováveis vêm protagonizando uma mudança importante no setor elétrico. Com custo nivelado inferior às fontes fósseis, a energia solar, em especial, tornou-se uma fonte barata e contribui para a descarbonização da geração de energia, ao mesmo tempo que impulsiona a geração distribuída, descentralizando o sistema elétrico. Com o crescimento de prossumidores conectados às redes elétricas, as empresas de distribuição de energia são diretamente impactadas por esta nova dinâmica setorial. Devido à variabilidade de geração descentralizada, fundamentalmente fotovoltaica, novas tecnologias digitais são empregadas para responder às demandas locais. O equilíbrio econômico-financeiro desse setor, e o seu desenvolvimento sustentável, requer novo arcabouço regulatório. Descentralização, descarbonização e digitalização são os vetores de transformação do setor de distribuição de energia elétrica brasileiro.

Transformação a Vista

O setor elétrico mundial passa por grandes transformações. Há pressões cada vez maiores para que a matriz de geração elétrica dos países seja descarbonizada, não apenas pelo fato de que as fontes fósseis são recursos limitados, mas principalmente porque a humanidade está diante de uma mudança climática global iminentemente irreversível. De acordo com o Global Footprint Network, é necessário 1,75 planeta Terra para balancear os recursos que a humanidade demanda atualmente. Um desequilíbrio que só cresce.

Antes do surgimento da indústria petrolífera (há 150 anos, aproximadamente) a pegada de carbono da humanidade era quase zero. Embora o petróleo tenha proporcionado desenvolvimento notável para muitas nações, o seu legado ambiental é perturbador: atualmente a pegada de carbono contribui com 60% da pegada ecológica, que quantifica a demanda pela biocapacidade do planeta para prover os recursos naturais à vida e absorver os resíduos gerados, principalmente para sequestrar o CO2 emitido pelas atividades humanas.

Descarbonizar o setor elétrico, portanto, é um compromisso que muitos países assinaram e ratificaram no Acordo de Paris (2015) – e em muitas outras conferências anteriores sobre a mudança climática – além de ser uma necessidade premente.

Há outro fator que motiva a descarbonização?

Segundo a Agência Internacional de Energia Renovável (IRENA, na sigla em inglês), o custo nivelado da eletricidade de fontes renováveis tais como, biomassa, hídrica, solar, eólica e geotérmica, atingiu níveis competitivos históricos comparado às fontes fósseis para geração centralizada. Fontes renováveis, portanto, representam agora a solução mais barata de geração e têm permitido que as novas adições de capacidade sejam majoritariamente renováveis. No caso brasileiro, por exemplo, o leilão de geração A-4 de 2018 contratou 1 GW, distribuídos em 39 empreendimentos. Deste total, 29 empreendimentos foram de energia solar e 4 de parques eólicos, negociados com preço médio final de R$ 118,07/MWh e R$ 67,60/MWh, respectivamente (ANEEL, 2018). Os destaques do leilão foram as fontes solar e eólica, que dominaram a quantidade de empreendimentos e despontaram como as fontes mais baratas de geração.

Já no leilão A-4 de 2019, foram contratados 401,6 MW em 15 empreendimentos, 6 de solar e 3 de eólica, negociados com preço médio final de R$ 67,48/MWh e R$ 77,99/MWh, respectivamente (CCEE, 2019). O destaque neste leilão foi a fonte solar que surpreendeu com deságio médio de 75,6% em relação ao preço inicial estipulado de R$ 276/MWh e se tornou a fonte mais barata de energia no Brasil e no mercado internacional, com menor preço registrado, equivalente a US$ 17,02/MWh. Antes, o menor preço era mexicano, cotado a US$ 19,70/MWh.

A descarbonização não é apenas uma tendência dada a necessidade de se cumprir os termos de acordos climáticos, mas uma consequência natural da busca por soluções mais baratas e competitivas de geração de eletricidade. E a vantagem de custos, principalmente da energia solar, deriva do aprimoramento tecnológico e do ganho de escala. A queda abrupta dos preços dos módulos solares nos últimos anos impulsionou a energia solar como jamais visto, ao mesmo tempo que a eficiência dos módulos continua evoluindo.

A tecnologia empregada na energia solar permitiu que unidades de potência muito pequenas pudessem ser empregadas para conversão energética sem grandes infraestruturas de suporte e transmissão, levando a geração de pontos centrais para onde a energia é consumida (geração junto à carga). Devido à natureza distribuída da energia solar, a geração distribuída (GD) tem forte apelo entre os consumidores, principalmente residenciais.

Desde a sua regulamentação pela ANEEL em 2012, a GD acumula 143.752 unidades consumidoras com micro ou minigeração distribuída a partir de fontes renováveis (CGH, eólica, solar fotovoltaica ou térmica à biomassa), mas 99,7% delas com solar e contribuindo com 91% da capacidade instalada. Os consumidores residenciais respondem aproximadamente por ¾ do total de “prossumidores” (consumidores-geradores) e as instalações comerciais somam mais de 40% da capacidade total de GD.

A energia solar se difunde rapidamente porque é a solução mais barata para geração própria de eletricidade e muito versátil para diferentes perfis de consumo. Mesmo na GD, o custo da energia gerada por um sistema fotovoltaico para autoconsumo é significativamente menor à tarifa de fornecimento local, ainda que considerado uma taxa de desconto compatível com a taxa Selic. Além disso, a energia solar é definitivamente um investimento: devolve o capital próprio investido de 4 a 7 anos, enquanto a geração pode durar ainda mais 20 anos depois desse prazo. Sem requisitar, na maioria das vezes, espaço adicional e infraestrutura, a energia solar deve ainda crescer muito no Brasil, dominando quase que absolutamente a GD no país. Expansões de capacidade têm custo marginal bem menor que a geração centralizada e tendem a deixar os consumidores menos sensíveis aos aumentos de tarifas. Segundo o último Plano Decenal de Expansão de Energia publicado em 2018, em 2027 haverá 1,35 milhão de adotantes de sistemas de micro ou minigeração distribuída, totalizando 11,9 GW, que exigirão quase R$ 60 bilhões em investimentos ao longo do período (MME/EPE, 2018).

Quais São os Impactos da GD no Setor de Distribuição de Energia Elétrica?

A GD está empurrando a geração para as bordas (para o consumidor final) a partir do centro (da geração centralizada), descentralizando o setor elétrico à medida que cresce o número de prossumidores conectados às redes elétricas de distribuição. Em pouco tempo o modelo tradicional de geração, fundamentalmente centralizado, passará a ter um novo modelo – mais participativo – e o sistema elétrico tenderá a ficar mais interconectado e complexo de ser gerenciado. A GD impõe, contudo, dois grandes desafios técnicos: a natureza intermitente das fontes renováveis e o fato de que a geração não poder ser despachada pelo operador do sistema. Novas tecnologias de armazenamento podem, entretanto, contornar e superar esses desafios técnicos, tornando a geração passiva em inteligente. As baterias podem armazenar eletricidade em momentos quando o excesso de geração seria exportado para a rede elétrica, poupando o sistema de distribuição de picos de fluxo energético, especialmente por prossumidores residenciais que tendem a ter um fator de simultaneidade (consumo e geração simultâneos) muito baixo. A gestão eficiente de todo o sistema será realizada do centro para as bordas e das bordas para o centro. A inteligência do sistema será descentralizada, processando dados provenientes dos geradores e dos consumidores, simultaneamente, e em fluxos multidirecionais de comunicação. Não será apenas as tecnologias inovadoras que permitirão isso, mas principalmente suas associações simbióticas, inclusive para comercialização dentro de microrredes, entre consumidores e geradores locais, quebrando, em parte, o monopólio natural das empresas distribuidoras.

Tamanha transformação também impõe desafios para a regulamentação e fiscalização. A Resolução Normativa n° 482/2012, que regulamenta a GD, nunca foi tão debatida pelas distribuidoras, pela ANEEL, pelos empresários e pelos prossumidores – estes últimos outrora consumidores cativos que experimentaram os equívocos das políticas do setor que culminaram no “apagão” de 2001 e os aumentos desproporcionais das tarifas. A modicidade tarifária é obtida de forma mais prática com o crescimento da GD do que com políticas públicas do setor ou concessões para grupos privados. Aqui, por outro lado, vale uma análise dos benefícios reais da GD frente ao risco do subsídio cruzado relatado pelas distribuidoras de energia. As distribuidoras clamam pela revisão da resolução com relação ao sistema de compensação de energia que atualmente compensa de forma integral a energia excedente do prossumidor injetada na rede. As distribuidoras alegam que precisam ser mais bem remuneradas pelo uso do “serviço fio”, caso contrário, precisam repassar custos de operação e manutenção das suas redes para a tarifa. O aumento das tarifas estimula o aumento de prossumidores e assim, mais uma vez, as tarifas precisam ser reajustadas, onerando o consumidor sem GD.

Como a Digitalização Pode Ajudar o Setor de Distribuição de Energia Elétrica?

Em 2012, 90% de todos os dados que já existiram no mundo haviam sido criados apenas 2 anos antes. A Internet das Coisas (IoT, na sigla em inglês), não irá desacelerar este passo, pelo contrário, espera-se que os dispositivos “smart” se multipliquem muito rapidamente, passando de 2 bilhões em 2016 para 200 bilhões em 2020 (INTEL, 2016). Esses dispositivos ou sensores irão coletar grandes volumes de dados (Big Data) nos processos industriais, comerciais e em nossas casas e com isso espera-se que muitos serviços possam ser automatizados usando-se tecnologias de Inteligência Artificial (IA), análise de dados (Data Analysis) e Blockchain. A digitalização de processos de negócios abre caminho para novos modelos, rompendo os tradicionais:

“Seguindo os passos da tecnologia da informação, a disrupção da energia e transporte está se movendo rapidamente em direção a um modelo de energia participativa. Estamos caminhando para uma arquitetura distribuída de produção e uso de energia possibilitada por software, sensores, inteligência artificial, robótica, smartphones, internet móvel, big data, analítica, satélites, nanotecnologia, armazenamento de eletricidade, ciência de materiais e outras tecnologias de aprimoramento exponencial”. (SEBA, 2014:12).

O maior potencial da digitalização é a sua habilidade de romper barreiras e aumentar a flexibilidade do sistema como um todo (IEA, 2017). Ou ainda:

“À medida que a digitalização avança, um sistema altamente interconectado pode emergir, obscurecendo a distinção entre fornecedores e consumidores tradicionais, com oportunidades crescentes de mais comércio local de energia e serviços de rede. À medida que essa infraestrutura física evolui e as funções dos acionistas mudam, as redes centralizadas e os proprietários e operadores das redes de transmissão continuarão a fornecer a espinha dorsal que equilibra o sistema elétrico geral.
[…] A eletrificação contínua dos serviços de energia em todos os setores de uso final, notadamente os transportes, e o crescimento de fontes de energia descentralizadas – o que aconteceria mesmo sem as tecnologias digitais – são os outros fatores. Mas a digitalização – particularmente o crescimento da conectividade entre geradores, operadores de rede e consumidores finais – está apoiando essas tendências e ajudando a acelerar a transformação do sistema elétrico e o estabelecimento de novos modelos de negócios. Ao permitir a troca de informações operacionais em tempo real entre equipamentos em qualquer parte do sistema de energia, as ineficiências dentro de cada setor são removidas, melhorando a confiabilidade e diminuindo os custos, à medida que consumidores e geradores respondem instantaneamente para mudar as condições do mercado”.
(IEA, 2017:84-86).

A digitalização do setor elétrico, então, promoverá um novo equilíbrio de negócios do mercado de energia visto que os sistemas de energia precisarão se adequar para fornecer eletricidade para setores que serão continuamente eletrificados, como o de transportes. Veículos elétricos (EV, na sigla em inglês) se multiplicam rapidamente nos países desenvolvidos e ameaçam os veículos à combustão. O custo operacional de um EV é nitidamente uma fração do custo operacional do seu equivalente à combustão. Em poucos anos o custo da bateria pode cair para US$ 100/kWh e o custo de US$ 50/kWh pode ser uma meta para 2030. (IRENA, 2016). Em pouco tempo um EV será uma opção mais barata que os veículos tradicionais. A eletrificação do transporte doméstico e individual impactará muito o setor elétrico. Em 2030, o transporte será a maior fonte de nova receita de venda de eletricidade. (Fox-Penner, 2018).

No Brasil, projeções apontam que ganhos de eficiência energética em diferentes tecnologias podem impulsionar a venda de veículos híbridos e elétricos e que, em 2050, a presença deles poderá ser de 20% a 41% da frota nacional. (EPE, 2013).

Considerações Finais

A expansão da geração de energia com fontes renováveis é inevitável devido à pressão global para o desenvolvimento econômico em baixo carbono. Aliada ao custo mais baixo, a expansão da energia eólica não encontra resistência para a geração centralizada. A energia solar, por sua vez, deverá crescer sobretudo entre os consumidores residenciais, impulsionando a descentralização do sistema elétrico através da geração distribuída.

A digitalização acomodará a descentralização da geração propiciando o gerenciamento de um sistema elétrico mais complexo, mas também mais participativo com troca de dados e informações para equilibrar tecnicamente o sistema e permitir transações comerciais entre geradores e consumidores locais.

Descentralização, descarbonização e digitalização são vetores de transformação que apontam para um novo modelo energético que mudará sobremaneira o mercado de distribuição de energia elétrica nos próximos anos. Para tanto, um novo arcabouço regulatório e uma nova visão institucional para o setor elétrico são fundamentais.

Referências

ABRADEE. Seminário: o futuro do atendimento e relacionamento com o consumidor. Brasília, junho de 2017.

ANEEL. BIG – Banco de Informações de Geração: Capacidade de Geração do Brasil.. Disponível em http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/capacidadebrasil/capacidadebrasil.cfm. Acesso em 02 de dezembro de 2019

—. Geração Distribuída. s.d. Disponível em http://www2.aneel.gov.br/scg/gd/GD_Fonte.asp. Acesso em 02 de dezembro de 2019.

—. Leilão de geração “A-4” termina com deságio de 59,07%. 2018. Disponível em http://www.aneel.gov.br/sala-de-imprensa-exibicao/-/asset_publisher/XGPXSqdMFHrE/content/leilao-de-geracao-a-4-termina-com-desagio-de-59-07-/656877?inheritRedirect=false. Acesso em 28 de junho de 2019.

—. Resolução Normativa n° 482. 2012.

Canal Energia. 2019. CanalEnergia. Disponível em http://canalenergia.com.br/noticias/53103858/mercado-livre-garantiu-o-sucesso-do-leilao-a-4. Acesso em 29 de junho de 2019.

CCEE. 29° Leilão de Energia Nova A-4. 2019. Disponível em http://leilaopublico.ccee.org.br/A4/RelatorioFinal.aspx. Acesso em 28 junho 2019.

EPE. “Calculadora Brasil 2050.” Transporte de Passageiros: tecnologias eficientes. 2013. Disponível em http://calculadora2050.epe.gov.br/assets/onepage/21.pdf. Acesso em 23 set. 2019.

—. Nota Técnica PR 08/18. Recursos Energéticos Distribuídos 2050. Rio de Janeiro, 2018.

Fox-Penner, Peter. “The Implications of Vehicle Electrification”. In: Sivaram, Varun. Digital Decarbonization: Promoting Digital Innovations to Advance Clean Energy Systems. Nova Iorque: The Council on Foreign Relations | Maurice R. Greenberg Center for Geoeconomic Studies, 2018, pp. 55-62.

Global Footprint Network. Ecological Footprint. Disponível em https://www.footprintnetwork.org/our-work/ecological-footprint/. Acesso em 16 de outubro de 2019.

IEA. Digitalization & Energy. 2017.

INTEL. A Guide to the Internet of Things: how billions of online objects are making the web wiser. 2016. Disponível em https://www.intel.com/content/dam/www/public/us/en/images/iot/guide-to-iot-infographic.png. Acesso em 2 de julho de 2019.

IRENA. Electric Vehicles: tecnology brief. 2016. Disponível em https://irena.org/-/media/Files/IRENA/Agency/Publication/2017/IRENA_Electric_Vehicles_2017.pdf.

Marr, Bernard. How Much Data Do We Create Every Day? The Mind-Blowing Stats Everyone Should Read. 21 de maio de 2018. Forbes. Disponível em https://www.forbes.com/sites/bernardmarr/2018/05/21/how-much-data-do-we-create-every-day-the-mind-blowing-stats-everyone-should-read/#42b78bd960ba. Acesso em 1° de julho de 2019.

MME/EPE. Plano Decenal de Expansão de Energia 2027. 2018.

Seba, Tony. Clean Disruption of Energy and Transportation. 1ª Edição. Silicon Valley: Clean Planet Ventures, 2014.

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Sobre o autor | Igor Cordeiro é instrutor de energias renováveis na Inergial Energia Ltda.