Recursos Energéticos de Fluxo e de Estoque

Desde as mais remotas sociedades primitivas, o homem busca se apropriar de recursos e formas de energia para a sua subsistência e desenvolvimento social e econômico. Cerca de doze mil anos atrás, as sociedades nômades de caçadores–coletores deram lugar – em longo período de transformações– às sociedades agrárias primitivas. Na chamada Revolução Agrícola (Revolução Neolítica), a domesticação de plantas e animais empregou o processo de fotossíntese para aumentar a produção de alimentos. As plantas sempre foram os únicos conversores energéticos naturais capazes de transformar energia solar em energia química, enquanto músculos humanos e de animais foram os conversores naturais da energia química em energia mecânica necessária para cultivar os campos. A agricultura, portanto, constituiu por milhares de anos, do ponto de vista energético, um sistema de energia solar controlado (SIEFERLE, 2001), mas limitado à eficiência da fotossíntese, em torno de 4% (SMIL, 2002). O reino animal, que se sustentava das porções de radiação solar armazenadas na biomassa, dependia energicamente do reino vegetal.

A quantidade de energia capturada pela fotossíntese era o limite superior da energia disponível para as atividades produtivas (WRIGLEY, 2013). Embora pudessem empregar a conversão solar–química para armazenar energia na biomassa, as sociedades agrárias se beneficiavam passivamente dela porque não controlavam o tempo do processo de conversão e, por isso, sofreram com instabilidades produtivas e escassez de alimentos, embora 90% da população, em média, se dedicasse às atividades agrícolas (LENTON; PICHLER; WEISZ, 2016). A energia solar capturada supria as necessidades metabólicas e as atividades laborais encerradas dentro da economia agrícola. Extensões de terra e gado podiam aumentar a produção, mas não necessariamente resultavam em excedentes ou incremento de alimentos per capita. Ao contrário, investidas por desenvolvimento resultavam em mais trabalho humano e animal com maior gasto energético metabólico. Com pouco excedente energético, não havia abundância de alimentos e de bens, pelo menos para a maioria da população.

Nas sociedades pré-industriais, a energia hidráulica e a energia eólica foram empregadas para realizar trabalho através de moinhos, rodas d’água e embarcações. Essas duas formas de energia são essencialmente energia cinética de fluidos distintos e derivam diretamente da radiação solar que energiza a biosfera e ‘motoriza’ o ciclo hidrológico e a movimentação das massas de ar. Antes da Revolução Industrial, as economias eram orgânicas porque estavam limitadas à quantidade de radiação solar e pela fotossíntese (WRIGLEY, 2013), mas a partir da Revolução Industrial a base energética mudou e passou-se a usar combustíveis fósseis (SIEFERLE, 2001), matéria orgânica fossilizada que, em período geológico (milhões de anos), concentrou grande quantidade de energia solar.

Neste contexto existiram “apenas dois principais regimes energéticos na história da humanidade: a era da energia solar (um recurso renovável) de 10.000 a.C. a 1800 d.C. e a era dos combustíveis fósseis (recursos não renováveis) de 1800 d.C. até o presente” (BURKE III, 2009, p. 35). De 10.000 a.C. a 1700, a população cresceu muito lentamente; em média, apenas 0,04% ao ano. A partir de 1800 até os dias atuais, a população mundial aumentou sete vezes (ROSER; RITCHIE; ORTIZ-OSPINA, 2013); paralelamente, o consumo de energia primária per capita quadruplicou e o consumo global de energia aumentou 27 vezes (SORRELL, 2015). A Figura 1 mostra que os combustíveis fósseis permitiram que o PIB mundial per capita acompanhasse pari passu a amplificação do consumo energético, resultando em desenvolvimento econômico acelerado.

Figura 1: população mundial de 1800 a 2019 (linha cheia) e PIB per capita de 1870 a 2016 (linha tracejada) com dados interpolados entre 1870 a 1949 e valores ajustados entre países e em USD de 2011.
Fonte: elaborado pelo autor com dados de Ritchie e Roser (2014) para população e de Bolt et al. (2018) para PIB per capita.

As sociedades industriais tiveram acesso à energia abundante, à alta densidade energética estocada nos combustíveis fósseis. Em outras palavras, as sociedades industriais se desenvolveram com acesso quase ilimitado aos estoques energéticos fósseis (carvão, petróleo e gás natural) enquanto as sociedades anteriores estavam limitadas pelos fluxos energéticos da radiação solar e suas derivadas (energia hidráulica e energia eólica).

Combustíveis Fósseis na Base Energética

Os combustíveis fósseis romperam o limite passivo do sistema agrário e a abundância dos estoques energéticos liderou uma transformação significativa dos sistemas energéticos nas sociedades. Em meados do século 19, a biomassa não acompanha o ritmo de crescimento populacional, que aumentou a demanda energética como um todo, e o carvão aumenta sua participação como recurso energético. A primeira transformação energética ocorre quando o carvão supera a biomassa (ZOU et al., 2016), possibilitando um crescimento vertiginoso do seu uso até atingir o pico de participação percentual em nível global por volta da Primeira Guerra Mundial (ver Figura 2).

Figura 2: proporção percentual dos recursos energéticos de 1800 a 1960.
Fonte: elaborado pelo autor com dados de Ritchie e Roser (2014).

No início, a Revolução Industrial intensificou o trabalho físico muscular e aumentou a quantidade de energia para as máquinas – os principais serviços energéticos até então – mas depois outros tipos de serviços energéticos, como iluminação e transporte, foram demandados em quantidades quase inimagináveis desde 1750 (KEAY, 2007). Em uma primeira fase da industrialização, o carvão forneceu energia sob a forma de vapor para a indústria e impulsionou o transporte ferroviário e marítimo. Em uma segunda fase, o desenvolvimento de motores de combustão interna a gasolina ou diesel flexibilizaram o transporte, conferindo incrível mobilidade às pessoas e cargas.

No início do século 20, diversos recursos energéticos passam a coexistir, atendendo, cada um com suas características, às necessidades específicas em diversos setores das sociedades industriais. O petróleo começa a deslocar o uso do carvão e após a Segunda Guerra Mundial observa-se uma ‘explosão’ populacional, correlacionada com a versatilidade dos seus derivados. Em 1965, petróleo e gás natural superaram o carvão, liderando a segunda transformação energética (ZOU, et al., 2016). Com o tempo, os combustíveis fósseis passaram a competir entre si, e os melhores adaptados acabaram vencendo (BELTRAN, 2018). Um combustível passa a dominar sobre os demais em números percentuais, porém o consumo absoluto de cada um não diminuiu com o tempo – ao contrário – todos os combustíveis fósseis seguiram em expansão (Figura 3).

Figura 3: consumo de energia primária em TWh de 1965 a 2018.
Fonte: elaborado pelo autor com dados de Ritchie e Roser (2014).

A industrialização alterou os ciclos de materiais; o domínio da biomassa transformou-se no domínio dos minerais e, nas economias industriais, a atmosfera passou a ser o reservatório de descarte de CO2 (LENTON; PICHLER; WEISZ, 2016). A era fóssil possibilitou inegável desenvolvimento socioeconômico para muitos países, mas o uso dos estoques energéticos fósseis deixa um legado ambiental perturbador: o descarte de matéria (subprodutos da combustão) e energia (na forma de calor). Queimamos os estoques fósseis para usar a energia solar armazenada a milhões de anos e alteramos aceleradamente e irreversivelmente a qualidade da energia disponível (degradação entrópica). Essa externalidade negativa desequilibra a biosfera e eleva a temperatura média da Terra, e o seu efeito observável, é o que chamamos de mudança climática.

De Volta ao Sol

Contudo, foi apenas nos últimos anos que a energia solar e eólica, chamadas de energias renováveis, ganharam impulso e foram de recursos alternativos para competitivos, complementando a expansão da oferta energética pelo fator custo. A vantagem de custos é resultado do aprimoramento tecnológico mais recente e do ganho de escala. Esses recursos de fluxo, limpos e inesgotáveis, podem substituir parte significativa dos estoques fósseis finitos que suprem setores tradicionais como o transporte terrestre e a geração de eletricidade.

Com o advento da sociedade de ‘baixo carbono’, a terceira grande transformação dos combustíveis fósseis tradicionais em uma nova energia não fóssil se tornará inevitável (ZOU et al., 2016). O uso atual dos fluxos energéticos pelas sociedades modernas representa, em última análise, o retorno à fonte que majoritariamente sempre nos energizou. Não estaremos limitados, entretanto, à eficiência de conversão dos processos naturais, mas o quanto de energia a tecnologia vigente poderá converter instantaneamente e armazenar economicamente. Não se trata do abandono completo dos estoques fósseis, mas de uma complementação energética com os recursos de fluxo. A transformação que observamos atualmente revela a reapropriação direta e indireta da energia solar e a transição energética em curso, portanto, não é lenta ou disruptiva, mas contínua e impactante dentro da evolução energética desde a Revolução Agrícola. A humanidade se volta para o recurso solar pela primeira vez desde que deixou a era solar cerca de 200 anos atrás. Agora, com uma nova perspectiva de desenvolvimento estamos caminhando, conscientemente e mais eficientemente, de volta ao Sol.

Referências

BELTRAN, A. Introduction: Energy in History, the History of Energy. Journal of Energy History/Revue d’Histoire de l’Énergie, n. 1, 2018. Disponivel em: <energyhistory.eu/en/node/84>. Acesso em: 21 junho 2020.

BOLT, J. et al. Rebasing ‘Maddison’: new income comparisons and the shape of long-run economic development. Maddison Project Database, version 2018, 2018. Disponivel em: <https://www.rug.nl/ggdc/historicaldevelopment/maddison/releases/maddison-project-database-2018>. Acesso em: 07 junho 2020.

BURKE III, E. The Big Story: Human History, Energy Regimes, and the Environment. In: BURKE III, E.; POMERANZ, K. The Environment and World History. Berkeley: University of California Press, 2009. p. pp. 33-53.

KEAY, M. Energy: The Long View. Oxford Institute for Energy Studies, 2007.

LENTON, T. M.; PICHLER, P.-P.; WEISZ, H. Revolutions in energy input and material cycling in Earth history and human history. Earth System Dynamics, 7, 2016. 353–370.

RITCHIE, H.; ROSER, M. Energy. OurWorldInData.org, 2014. Disponivel em: <https://ourworldindata.org/energy>. Acesso em: 07 junho 2020.

ROSER, M.; RITCHIE, H.; ORTIZ-OSPINA, E. World Population Growth. OurWorldInData.org, 2013. Disponivel em: <https://ourworldindata.org/world-population-growth>. Acesso em: 06 junho 2020.

SIEFERLE, R. P. The Subterranean Forest: Energy Systems and the Industrial Revolution. Tradução de Michael P. Osman. Cambridge: The White Horse Press, 2001.

SMIL, V. The Earth’s Biosphere: Evolution, Dynamics, and Change. Cambridge: The MIT Press, 2002.

SORRELL, S. Reducing energy demand: A review of issues, challenges and approaches. Renewable and Sustainable Energy Reviews, 47, 2015. 74-82.

WRIGLEY, E. A. Energy and the English Industrial Revolution. Philosophical Transactions of the Royal Society A 371: 20110568, 2013.

ZOU, C. et al. Energy Revolution: From a Fossil Energy Era to a New Energy Era. Natural Gas Industry B, 3, n. 1, 2016. 1-11.

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Sobre o autor | Igor Cordeiro é instrutor de energias renováveis na Inergial Energia Ltda.