Em 2012 uma situação inédita possibilitou que qualquer consumidor de energia elétrica no Brasil pudesse gerar a sua própria eletricidade. A Agência Nacional de Energia Elétrica (ANEEL) publicou a Resolução Normativa REN nº 482/2012 que regulamentou a chamada Geração Distribuída (GD) e estabeleceu o Sistema de Compensação de energia elétrica aplicável a unidades consumidoras em todo o país com micro ou minigeração distribuída. A partir daí a quantidade de geradores fotovoltaicos não parou de crescer. O ano de 2018 foi encerrado com mais de 50 mil consumidores conectados à rede elétrica através de micro ou minigeradores fotovoltaicos e, estima-se alcançar, ainda em 2019, 100 mil consumidores conectados, acumulando 1 GW de capacidade instalada de GD com energia solar fotovoltaica.

Apesar do sucesso da GD, é natural que resoluções sejam revisadas e aprimoradas continuamente, e com a REN nº 482 não tem sido diferente. Até o momento ela foi revisada em alguns aspectos pela REN nº 687 e pela REN nº 786 em 2015 e 2017, respectivamente. Em 2015, entretanto, o artigo 15 foi adicionado na resolução determinando que a REN nº 482 seria revisada até 31 de dezembro de 2019. E, de fato, a Agenda Regulatória da ANEEL, para o biênio 2018-2019, estabeleceu, no item 50, a atividade para aprimorar a REN nº 482 no primeiro semestre de 2018.

Em maio de 2018 a Nota Técnica nº 0062/2018 instaurou a abertura da Consulta Pública 010/2018 – apenas a primeira de sucessivas etapas – para a apresentação do relatório de Análise de Impacto Regulatório (AIR) e de Audiências Públicas até a publicação da resolução aprimorada.

Como os aspectos técnicos já haviam sido aprimorados anteriormente, agora o enfoque desta revisão será o aspecto econômico e a forma de compensação de energia, conforme a Nota Técnica textualmente explica:

[…] Assim, o Sistema de Compensação precisaria ser reavaliado de modo a equilibrar a regulamentação com a situação atual do mercado, sendo necessário avaliar a pertinência da forma de remuneração atual, ponderando a previsão da magnitude dos impactos que a GD causará na rede e a sua sustentabilidade.

ANEEL. Nota Técnica nº 0062/2018, fl. 6.

É interessante destacar que a quantidade de consumidores que instalaram micro ou minigeração tem sido inferior às projeções realizadas pela ANEEL. Contudo, os impactos reais da GD são mais importantes em relação à potência total instalada do que à quantidade de conexões. E, sobre a potência instalada, as projeções também falharam, pois de fato ela é bem superior ao que se esperava.

A ideia central é evitar que a regulamentação da GD, de acordo com a visão da Agência, seja, ao mesmo tempo, muito boa para “prossumidores” (consumidores com GD) e muito ruim para os demais consumidores. Assim, a Nota técnica ainda pontua:

[…] a AIR visa avaliar formas diferentes de compensação da energia injetada na rede por unidades consumidoras com micro ou minigeração distribuída, quantificando seus impactos para os diversos envolvidos, de modo a escolher aquela que implique em maiores benefícios totais para a sociedade.

ANEEL. Nota Técnica nº 0062/2018, fl. 7.

Atualmente o Sistema de Compensação faz com que a energia injetada pelo prossumidor seja compensada integralmente por todas as componentes tarifárias que compõem a fatura de energia. Na prática, o prossumidor paga a diferença da energia injetada e a energia consumida da rede, ou seja, se o medidor bidirecional registra, por exemplo, 250 kWh de energia consumida (energia que entra) e 150 kWh de energia injetada (energia que sai), a cobrança incidirá sobre a diferença de 100 kWh, respeitando-se a fatura mínima referente ao custo de disponibilidade. Atualmente a quantidade de energia injetada tem o mesmo valor que a energia consumida da rede, embora a diferença seja calculada em kWh e não em Reais.

A proposição da revisão criou 6 alternativas (da alternativa 0 a alternativa 5) que deixam de faturar sobre a diferença e passam a faturar, progressivamente, sobre toda a energia consumida da rede sobre diferentes componentes tarifárias.

A fatura de energia elétrica para o grupo B (basicamente consumidores residenciais e comerciais conectados em baixa tensão), como a conhecemos hoje, é composta basicamente de duas tarifas: a Tarifa de Uso do Sistema de Distribuição (TUSD) e a Tarifa de Energia (TE). A TUSD e a TE, por sua vez, são compostas por outras componentes tarifárias, a saber:

TE = Energia + Encargos;

TUSD = Fio A + Fio B + Perdas + Encargos.

A componente “Energia” refere-se ao custo da energia propriamente dita, que foi gerada em algum (ou alguns) dos milhares de empreendimentos de geração elétrica no país, comprada e revendida aos consumidores pelas distribuidoras de energia. As componentes chamadas “Fio A” e “Fio B” referem-se ao transporte da energia e agregam outros custos regulatórios.

Figura 1 – Propostas de Compensação (alternativas 0 a 2).
Fonte: autoria própria.
Figura 2: Propostas de Compensação (alternativas 3 a 5).
Fonte: autoria própria.

Claramente as alternativas apresentadas põem em foco a TUSD e as suas componentes porque o prossumidor é capaz de gerar a sua própria energia, mas não dispõe de sistema de distribuição próprio e, quando injeta energia na rede, o faz pela infraestrutura de distribuição já existente da distribuidora local.

Entretanto, o primeiro impacto da GD, sem dúvida, é a energia evitada. A quantidade de energia gerada pelos sistemas de micro ou minigeração faz com que a mesma quantidade de energia deixe de ser comprada pela distribuidora das centrais geradoras. A distribuidora deixa de ter o custo e a receita dessa energia, mas reivindicaria, mesmo assim, a utilização do seu sistema de distribuição pela GD – o chamado “serviço fio” – já que os sistemas de micro ou minigeração (chamados de sistemas on-grid) estão conectados à sua rede elétrica de distribuição.

A discussão, contudo, precisa ser avaliada porque não se pode afirmar que a GD aumentaria o fluxo energético na rede de distribuição ocasionando aumento de custo para a distribuidora. Pela mesma lógica, ao contrário, a GD poderia aliviar esse fluxo ocasionando na prática um ganho ou saving para a distribuidora. Ou, ainda, a situação pode ser mais complexa e uma combinação das duas possibilidades, dependendo da região, da época do ano, tipo de consumidor e perfil de consumo (curva de carga).

Uma simulação básica com valores hipotéticos mostra o valor da TE e da TUSD por kWh e a contribuição porcentual das componentes tarifárias.

Tabela 1 – TE e TUSD e suas Componentes Tarifárias (valores hipotéticos).
Fonte: autoria própria.

Se tomarmos um exemplo de aplicação residencial, em um dado período, supõe-se que um microgerador fotovoltaico gera 200 kWh e o consumo total da residência é 300 kWh. Assim, a fatura de energia pela regra atual será de (300-200) kWh multiplicado pela tarifa de fornecimento (TE+TUSD), o que resulta em R$ 50,00. Neste caso não importa quanta energia foi injetada pelo microgerador na rede porque a compensação de energia é sempre integral (1:1) e a economia é dada pela razão da geração fotovoltaica pelo consumo total (200 kWh/300 kWh) ou 66,7% (sem GD essa residência pagaria R$ 150,00 de energia elétrica).

Agora, vamos simular a fatura segundo as demais alternativas propostas para a revisão do Sistema de Compensação. Para tanto, é fundamental saber quanta energia é injetada porque as demais componentes tarifárias não serão compensadas integralmente. Utilizando o exemplo anterior definimos a primeira situação em que 50 kWh são injetados na rede e, portanto, são consumidos na rede (300-200) kWh + 50 kWh = 150 kWh:


Tabela 2 – Simulação de Economia nas Diferentes Alternativas (Simultaneidade de 75%).
Fonte: autoria própria.

À medida que cada componente tarifária deixa de ser compensada integralmente, a economia da GD cai drasticamente.

Considerando-se o mesmo exemplo em uma segunda situação, mas com energia injetada de 128 kWh:


Tabela 3 – Simulação de Economia nas Diferentes Alternativas (Simultaneidade de 36%).
Fonte: autoria própria.

Por trás da quantidade de energia injetada na rede há um importante e essencial conceito: o fator de simultaneidade – proporção da energia gerada que é consumida instantaneamente. Nas duas situações acima, 50 kWh de energia injetada corresponde a 150 kWh de energia consumida instantaneamente e 128 kWh de energia injetada corresponde a 72 kWh de energia consumida instantaneamente, ou 75% e 36% de simultaneidade, respectivamente.

Nota-se que nas duas simulações a geração fotovoltaica e o consumo total não sofreram alteração. Quanto maior a energia injetada ou quanto mais se “utiliza” a rede de distribuição quando há excesso momentâneo de geração, menor será a economia que a GD proporcionará. Então, é possível conhecer o custo da energia injetada para cada alternativa, considerando-se os valores hipotéticos da TE e da TUSD.


Tabela 4 – Custo da Energia Injetada nas Diferentes Alternativas (valores hipotéticos).
Fonte: autoria própria.

Independentemente da geração, consumo total ou fator de simultaneidade, implicitamente cada alternativa proposta “taxa” diretamente a energia injetada e consequentemente o uso da rede da distribuidora. O custo da energia injetada das alternativas 4 e 5 é igual e superior, respectivamente, à TUSD deste exemplo (R$ 0,25/kWh). Na primeira situação o prossumidor que injeta 50 kWh pela alternativa 1, teria um custo adicional da sua microgeração de 50 kWh · R$ 0,14/kWh = R$ 7,00 e na segunda situação de R$ 17,92. Portanto, percebe-se que o que está em discussão na revisão da REN nº 482 é a remuneração das distribuidoras pelos micros e minigeradores quando há injeção. E aí, quanto menor o fator de simultaneidade, maior será esse custo adicional.

Relatório de AIR

Na análise da GD para compensação local, o relatório indica que não será economicamente sustentável manter o Sistema de Compensação na alternativa 0 (atual). A possibilidade é avançar para a alternativa 1 quando se atingir 3,365 GW, esperado para 2025. Este marco de potência instalado é chamado de gatilho.

A AIR pontua que considerou manter por 25 anos (expectativa da vida útil do sistema fotovoltaico) a compensação de energia segundo a regra vigente para micro e minigeradores instalados até o final de 2019. A partir de 2020 até o ano do gatilho manter-se-á a alternativa 0 por 10 anos e depois a energia passará a ser compensada pela alternativa 1. Novos sistemas instalados a partir do gatilho passam a compensar diretamente pela alternativa 1.


Figura 3: Compensação Local pela Alternativa 1 com Gatilho de 3,365 GW.
Fonte: autoria própria.

Para as micro e minigerações para compensação remota, a análise sugere que o equilíbrio econômico será desfeito em poucos anos e propõe dois gatilhos: 1,25 GW e 2,13 GW, esperados para 2022 e 2025, respectivamente.

O primeiro gatilho muda a compensação para a alternativa 1 e o segundo gatilho para a alternativa 3. A compensação remota teria regras novas e ficaria assim:

Instalações até 2019 teriam compensações mantidas pela alternativa 0 por 25 anos. Instalações entre 2020 e o primeiro gatilho (1,25 GW) teriam compensação pela alternativa 0 por 10 anos e depois mudariam para a alternativa 3. Instalações entre os dois gatilhos seriam compensados pela alternativa 1 por 10 anos e depois mudariam para a alternativa 3. Após o segundo gatilho as instalações passam a compensar diretamente pela alternativa 3.


Figura 4: Compensação Remota pela Alternativa 1 e 3 com Gatilhos de 1,25 GW e 2,13 GW.
Fonte: autoria própria.

Considerações Finais

A GD é benéfica porque adia investimentos em novas redes de transmissão e distribuição, aumenta progressivamente a energia evitada, reduz perdas na distribuição e na transmissão, além de contribuir para a redução da emissão de gases do efeito estufa e da poluição atmosférica e ainda diversifica a matriz energética. No tempo de análise (2020 a 2035) a manutenção da regra atual (alternativa 0) é bastante positiva: a GD deixaria de emitir 79 milhões de toneladas de CO2 e geraria 589 mil empregos ao invés dos 433 mil que a alternativa 1 sugere.

Em uma eventual mudança da resolução a GD não deixará de evoluir, mas sua taxa de crescimento será nitidamente mais lenta, adicionando pelo menos 12 meses ao payback do sistema fotovoltaico com a adoção da alternativa 1. Embora os gatilhos sugeridos pareçam estar distantes no tempo, a GD avança rapidamente e, por enquanto, sem travas. O custo adicional da energia injetada aumenta à medida que se diminui a simultaneidade e a GD tenderia a ser menos atrativa para consumidores residenciais onde o consumo é mais concentrado nos horários de ponta, desalinhados com a geração fotovoltaica, fora da ponta. O percentual típico de simultaneidade para consumidores residenciais é de 36%, segundo dados da Empresa de Pesquisa Energética (EPE) e, assim sendo, os consumidores residenciais seriam os mais afetados.

Embora as distribuidoras possam reivindicar que as componentes tarifárias da TUSD ou a TUSD inteira não deva ser compensada pela GD – porque isso acarretaria em prejuízo – vale lembrar que os consumidores cativos já estão sujeitos ao custo de disponibilidade, que é o mínimo de fatura que se paga, mesmo não consumindo energia da rede. Qualquer mudança na resolução deveria, então, isentar os prossumidores deste custo, substituindo-o pelo custo adicional da energia injetada que estariam sujeitos.

Atualmente, há mais de 70 mil unidades consumidoras gerando a própria eletricidade, acumulando 720 MW de potência solar proveniente de recursos financeiros próprios. Adicionando-se a capacidade instalada de geração centralizada, a energia solar entrega 2,8 GW em todo o país, muito pouco se comparado com EUA e Japão com 50 GW cada um. É nítido, portanto, que os gatilhos propostos irão impor forte freio à expansão solar brasileira.

Em suma, é difícil entender como “maiores benefícios totais para a sociedade” serão alcançados com qualquer alternativa que não a atual, se claramente há risco para menor geração de empregos, estagnando a cadeia de valor fotovoltaica desenvolvida e com piores consequências para o meio-ambiente. É necessário observar o amadurecimento da fonte solar antes de impor qualquer freio financeiro tão cedo, afinal, existem mais de 80 milhões de unidades consumidoras, sobretudo consumidores residenciais.

Talvez a mudança da resolução seja inevitável, mas de forma alguma a energia solar será inviável, pelo contrário, o avanço tecnológico dos sistemas fotovoltaicos poderá impulsioná-la ainda mais. O importante é não desistir da energia solar, fonte inesgotável e limpa; a única com acesso viável – e individual – para pessoas e empresas realizarem a sua evolução energética, criando seus próprios meios de desenvolvimento sustentável. A GD trouxe a oportunidade e a opção do consumo energético sustentável em si, proporcionando, também, ganhos econômicos. Agora, espera-se que a GD não seja uma decisão meramente financeira!

“A energia é a artéria vital de cada desenvolvimento natural e social. Nenhum processo vital, natural ou social, é concebível ou descritível sem o seu fundamento energético”

Hermann Scheer, em O Manifesto Solar.

Fontes

[1] ANEEL. Resolução Normativa nº 482/2012. Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren2012482.pdf

[2] ANEEL. Resolução Normativa nº 687/2015. Disponível em: http://www2.aneel.gov.br/cedoc/ren2015687.pdf

[3] ANEEL. Agenda Regulatória. Disponível em http://www.aneel.gov.br/agenda-regulatoria-aneel

[4] ANEEL. Relatório de Análise de Impacto Regulatório nº 0004/2018. Disponível na seção de Audiências Públicas (AP nº 001/2019).

[5] Zilles, Roberto et al. Sistemas Fotovoltaicos Conectados à Rede Elétrica. Ed. Oficina de Textos. São Paulo, 2012.

[6] Empresa de Pesquisa Energética (EPE). Nota Técnica DEA 26/14 – Avaliação da Eficiência Energética e Geração Distribuída para os Próximos 10 anos (2014-2023). Disponível em http://www.epe.gov.br/

[7] ANEEL. Geração Distribuída. Acesso em 23 de abril de 2019. Disponível em http://www2.aneel.gov.br/scg/gd/GD_Fonte.asp

[8] ANEEL. BIG – Banco de Informações de Geração: Capacidade de Geração do Brasil. Acesso em 23 de abril de 2019. Disponível em http://www2.aneel.gov.br/aplicacoes/capacidadebrasil/capacidadebrasil.cfm

[9] Scheer, Hermann. O Manifesto Solar: Energia Renovável e a Renovação da Sociedade. CEPEL – CRESESB. Rio de Janeiro, 2015.

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Sobre o autor | Igor Cordeiro é instrutor de energias renováveis na Inergial Energia Ltda.